Vinte e oito

Leandro Fernandes
3 min readMay 18, 2017

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28. Vinte e oito.

Eu nasci nesse dia que hoje é dia da luta contra a homofobia, mas no dia em que eu nasci a homossexualidade ainda era doença mental, oficialmente. Um ano depois eu provavelmente nem sabia o que era amar outro homem, mas se soubesse e amasse já não seria considerado doente, pelo menos não oficialmente.

Cresci nos anos 90 com desenhos com dublagens horríveis na Cultura, SBT e Manchete. Assistia Robocop ainda muito novo para entender o que o filme dizia sobre o mundo, além da violência divertida.

Na minha adolescência eu enfim descobri o que era amar e, acima disso, desejar outro homem. No começo e durante longos anos eu escondia, era um segredo terrível e eu achava que o mundo ia desmoronar em cima de mim se as pessoas soubessem. Eu achava que ia chegar aos 19 anos financeiramente estável, casado e fazendo duas faculdades.

Quando terminei o ensino médio eu era uma sombra da pessoa que eu tinha sido. Aquele período me desiludiu e me desmontou completamente e aí eu fui remontando aos poucos com as peças que eu mais gostava e com a ajuda de pessoas maravilhosas que conheci no caminho. Cheguei aos 19 anos trabalhando em call center, sem pensar em fazer faculdade e tendo relacionamentos curtos e turbulentos. Eu ainda escondia a minha sexualidade, avaliava os ambientes para ver se devia ou não falar sobre isso, com medo de represálias. Descobri que o medo de ser demitido por ser gay é algo que existe.

Trabalhei muito nos 9 anos que me separam dos 19. De call centers a lojas virtuais de videogame, passando por redações de blog e finalmente como funcionário público, eu tive uma sorte enorme. Mesmo quando passei um aperto, logo as coisas se ajeitaram e eu aprendi a lidar com o meu dinheiro.

Os meus vinte anos foram uma montanha russa que foi mais fundo do que nunca e também subiu mais alto do que nunca. Ter depressão, eu descobri, é pra sempre. A gente vive com ela e sobrevive apesar dela. Descobri também que amizades são tipo elásticos, elas às vezes ficam bem apertadas e depois relaxam, indo pra longe, mas tudo bem, as coisas são assim.

Em determinado momento a montanha russa desceu tão fundo que eu tive que apertar um botão de pausa. E aí eu me permiti — fui fazer cursos de coisas que eu realmente amava, comecei a praticar kung fu, pintei o cabelo de azul. E de repente a montanha russa virou uma planície mais calma e tolerável. Em vez do relacionamento curto e turbulento agora eu me vejo num que veio de surpresa, quase não me deu escolha, igual quando você diz “não quero comer isso”, mas aí experimenta uma receita especialmente incrível e percebe que não vai conseguir parar de comer. A analogia é péssima. Mas a verdade é que estar num relacionamento assim é a tradução perfeita de porto seguro.

Hoje, às 6 da manhã, eu completei 28 anos de existência fora do útero da minha mãe. Nesse meio-tempo, eu amei muitos homens, desejei muitos outros, odiei alguns. Eu vi futuros distópicos se aproximarem, se desfazerem e se remontarem. Eu vi amigos se transformarem em outras pessoas e outras pessoas se transformarem em amigos. Entrei na USP, amei o curso e depois odiei, tranquei e voltei só pra desistir de vez. Comecei a escrever dois livros, ambos com gestações de mais de 5 anos, seguindo firmes, de pouco em pouco até o parto. Virei pai de dois gatos, tio de dois meninos lindos e redescobri o que é família. Fiz tudo isso e ainda, quando fecho os olhos, não penso em mim como alguém que viveu quase trinta anos.

Se quando eu nasci eu era, oficialmente, doente mental, hoje eu sei que sou uma pessoa absolutamente normal e, felizmente, ordinária, e fico muitíssimo feliz de viver a minha vida com algumas coisas extraordinárias. (e se isso fosse um vídeo, é agora que rolariam uns flashes dessas coisas incríveis — meu namorado, meus amigos, meus sobrinhos, minha mãe e irmã, meus gatos, videogames, séries, filmes, livros, música, caralho, viver é bom sim).

Vai ver é isso que chamam de plenitude. Ou vai ver é isso que chamam de ter vinte e oito anos. 28.

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Leandro Fernandes

Repórter, UX writer, mestre e jogador de RPG, roteirista e escritor, assisto mais de cinquenta séries e não me arrependo.