O que chatbots e roteiros de cinema têm em comum?

Leandro Fernandes
5 min readMar 21, 2023

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Cara pessoa que me lê, acredite: chatbots e roteiros de cinema têm muito em comum.

Quando eu comecei a estudar e escrever roteiros, uma das coisas mais importantes para mim era manter os diálogos verdadeiros. Aqueles diálogos que soam como algo que você ouviria enquanto anda pela rua. Parece até simples, mas manter esse tom de naturalidade é uma das coisas mais difíceis.

Toda vez que escrevemos um texto, escolhemos uma linguagem. E aqui não falo de línguas, mas da linguagem em si. Este artigo que você está lendo, por exemplo, foi escrito deliberadamente em uma linguagem que seja séria, mas acessível. Ela não tem um tom dialógico (de diálogo), e isso é uma escolha deliberada. Se tivesse, provavelmente seria mais difícil de passar algumas ideias, porque o tom dialógico não é naturalmente informativo — ele tem pausas, expressões e dinâmicas que podem até dificultar a clareza.

Mas, retomando o fio da meada, é difícil manter naturalidade nos diálogos porque estamos acostumados a manter uma uniformidade dentro de um texto. Mesmo dentro de livros que vendem muito bem e são considerados bons, é comum que o texto do narrador tenha a mesma linguagem do texto dos diálogos. E isso é estranho, porque a linguagem do narrador costuma ser bem menos natural e mais parecida com a deste texto. Mais formal. Mais organizada. O diálogo tem um quê de caos.

Neste texto, não cabe o caos. A função dele é passar uma ideia, formar um argumento. Ele também não busca um diálogo direto com quem está lendo. O roteiro também não busca, mas tem o diálogo interno, entre personagens. E isso torna o roteiro ou texto literário de ficção bem interessante. Porque um diálogo muito correto e sem o caos não soa natural.

MAS O QUE ISSO TEM A VER COM UX WRITING?

Agora, imagino que haja duas opções: ou você já sabe exatamente tudo que eu vou escrever a seguir ou está se perguntando o que isso tem a ver com UX writing e design conversacional. Bom, pensar nas frases de treinamento e intenções de um chatbot não é muito diferente de pensar em diálogos para um roteiro.

O tal tom natural se relaciona diretamente com a ideia de manter todo o texto de UX como algo dialógico — uma das heurísticas estabelecidas pela Torrey Podmajersky na bíblia do UX writing Redação Estratégica para UX. Afinal, assim como os personagens das histórias, é importante que toda a interface textual de um produto dialogue com o usuário de maneira natural. O objetivo é evitar exatamente o estranhamento: ao se deparar com um diálogo, texto ou elemento que soa falso ou forçado, é muito provável que haja algum ruído, seja a quebra da imersão em uma história ou a quebra de uma jornada de uma pessoa usuária.

E embora pensar em caos em um contexto de projeto de tecnologia possa ser assustador, o contato do chatbot com as pessoas usuárias envolve sempre caos. É claro que podemos prever certos comportamentos e usos da língua através de pesquisas, mas, como vou repetir mais à frente, nem o roteiro e nem o design conversacional resistem ao contato com o uso real da ferramenta, da língua ou do texto.

Quando eu dirigi e escrevi o Arestas, um podcast de ficção, ao lado do Pedro Schimidt, essa foi uma das minhas maiores preocupações. Manter os diálogos naturais era uma verdadeira obsessão. Para atingir isso, eu usei duas ferramentas. A primeira foi o roteiro em si, em que fiz questão de evitar nas falas essas marcas de texto escrito que não aparecem na fala: “tá” em vez de “está”, por exemplo. Fiz isso para evitar o risco dos atores e atrizes se sentirem obrigados a pronunciar cada sílaba.

A segunda ferramenta foi na hora de dirigir os atores. Quando ensaiamos, fomos adaptando o texto para deixá-lo cada vez mais próximo da linguagem que usamos enquanto falamos. Eu precisava ouvir os personagens de fato falando um com o outro para perceber o que era natural e o que era um resquício da linguagem que eu usava nas “narrações” do roteiro, mais formal, menos caótica. Quase ninguém com o sotaque de São Paulo pronunciaria o “r” no final da palavra “ficar”. As pessoas gaguejam, falam errado, trocam palavras.

Bom, nas últimas semanas tenho me dedicado a estudar mais sobre design conversacional e chatbots através do Botcamp da Let’s Bot. E, é claro, estou vendo novamente como o processo de treinar um bot é muito parecido com esse: o design conversacional é o roteiro e a curadoria é a direção.

Saber identificar exatamente o que um personagem quer dizer com uma linha de diálogo é muito parecido com identificar a intenção por trás de uma pergunta. Será que dizer “como isso funciona” é a mesma coisa de dizer “quero fazer isso”? Da mesma maneira, pensar em como uma pessoa usuária pode expressar uma mesma intenção é fascinante. Só que o pensamento, mesmo embasado em uma ótima pesquisa, não vai resistir ao teste real, que é o contato com a pessoa usuária.

Assim como o roteiro não resiste ao contato com os atores, é só na hora que o bot realmente conversa com uma pessoa usuária que nós percebemos que ele tem pontos cegos ou que está entendendo algo errado. No roteiro, é um momento em que você ouve a frase em voz alta e sente um desconforto. No bot, isso é mais fácil de identificar e não exige que se baseie na própria intuição (ufa!): basta olhar os dados. Uma conversa que não se conclui indica que houve um estranhamento, um momento de quebra.

É somente com a curadoria, com esse olhar para os dados e todo o processo, principalmente após os primeiros contatos com o mundo real, que conseguimos realmente afinar o design conversacional.

Para finalizar, um comentário bastante pessoal. Quando eu me formei em Letras (e descobri ali uma paixão por sintaxe, semântica e pragmática, áreas um tanto obscuras para quem não conhece o mundo da linguística), não imaginei também que houvesse uma área para aplicar isso dentro da tecnologia. Muito menos que fosse dialogar com minha formação como roteirista e escritor.

Eu percebi esse paralelo pela primeira vez quando, durante o bootcamp UX Writing Expandido, da How, a maravilhosa Janaína Pereira deu uma dica. Ela disse que, para garantir que o texto está dialógico, é necessário lê-lo em voz alta. Esse é exatamente um dos métodos para revisar os diálogos de um texto de ficção.

Se você chegou até aqui pelo meu Linkedin ou se me conhece, deve saber que eu tenho um histórico acadêmico e profissional bem diverso. Fiz um curso técnico de web design, trabalhei com isso durante um ano, depois passei a ser redator jornalístico, estudei Letras na faculdade, fui funcionário público em uma área administrativa durante cinco anos, fiz um curso de roteiro e voltei ao jornalismo. E agora estudo UX writing.

Por muito tempo, isso foi para mim um motivo de vergonha — eu sempre disse que tinha um “currículo bagunçado”, e ele nem menciona os anos que trabalhei com atendimento em call centers. Foi só quando comecei a estudar UX writing que descobri que tudo que eu aprendi ao longo desses anos não só está conectado, mas é útil! Foi um super alívio, que apazigua um pouco a sensação de que eu precisava ser um “especialista” em alguma coisa. Termos como “multipotencialidade” e “profissional T” me deram uma paz que eu não imaginava que encontraria a essa altura. Talvez, espero, apazigue a síndrome do impostor que atrapalha tanto o progresso.

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Leandro Fernandes

Repórter, UX writer, mestre e jogador de RPG, roteirista e escritor, assisto mais de cinquenta séries e não me arrependo.