Mestres de RPG, não joguem um balde de água fria nos seus jogadores

Leandro Fernandes
4 min readApr 12, 2021

--

Quando falamos em “progresso” no RPG, a primeira coisa que vem à cabeça deve ser: subir de nível, itens mágicos, poder. Esse tipo de avanço mecânico de progresso é super característico de boa parte dos sistemas.
Só que existe outro tipo de progresso: o narrativo. E progresso narrativo é muito mais complicado do que contabilizar XP e monitorar os itens obtidos pelo grupo. O progresso narrativo (principalmente em sistemas bem tradicionais e populares) envolve grandes vitórias, muitas vezes bem custosas, e deve representar uma mudança na dinâmica de poder entre heróis e vilões.
O progresso mecânico dificilmente é perdido, a não ser que um personagem morra ou seus itens sejam roubados. Já o progresso narrativo parece bem mais frágil.

A questão que eu quero levantar aqui é: retirar o progresso narrativo é aceitável? Se os jogadores e personagens se esforçaram para destruir um inimigo, sofreram perdas e tiveram uma vitória, é razoável que o inimigo volte depois, mais forte? Será que isso não representa um passo para trás, como se os esforços fossem recompensados negativamente?

Nessa linha, acho interessante comparar uma narrativa de RPG com obras de ficção. Vamos pensar em Avatar: A Lenda de Aang (spoilers à frente). No fim da segunda temporada, o grupo consegue se infiltrar no Reino do Fogo, mas são sistematicamente derrotados pelos inimigos. Eles não têm uma vitória sequer naquele momento. Todo o progresso narrativo é do lado dos vilões.

Na temporada seguinte, no entanto, os heróis começam a se reorganizar e têm uma série de pequenas vitórias em direção ao sucesso final, incluindo Zuko se juntando a eles e ajudando a derrotar um assassino que ele mesmo havia contratado.
Agora imagine comigo se o assassino voltasse episódios depois, três vezes mais forte, e matasse Zuko. Todo o progresso narrativo dos heróis estaria desfeito. Alguém gostaria de assistir esse tipo de história?
Será que alguém gosta de estar vivendo uma história em que os esforços resultam em vitórias só para depois serem recompensados com perdas?

Há uma profunda diferença entre uma derrota com resultados impactantes e uma vitória que depois é desfeita. O primeiro caso abre espaço para desenvolvimento e faz parte da (cansada) jornada do herói — é combustível. O segundo é desmotivador, apaga qualquer chama de narrativa que possa nascer dali.

Se os personagens conquistaram uma vitória, por mais improvável e difícil de lidar com ela que seja em termos de narrativa, eles merecem conquistar os resultados positivos dela. Se houverem consequências negativas, tudo bem, faz parte. Um bom conselho para qualquer mestre ou narrador de RPG é: não coloque os personagens dos jogadores em uma situação em que eles se sintam impotentes. Eles podem se sentir pressionados, abatidos, derrotados, ameaçados — tudo isso é combustível narrativo. Mas a impotência, a sensação de estar apenas olhando as coisas acontecendo e sendo jogado de um lado para o outro, isso é sinal de que a história que está sendo contada tem um único agente, com os outros sendo apenas espectadores passivos. Isso não é RPG. Ou melhor, é RPG ruim.

Antes que apontem dedos, sim, alguns sistemas e cenários atraem mais esse tipo de narrativa de impotência. Mas, mesmo em sistemas como Call of Cthulhu, os personagens têm aquele termo difícil de entender chamado agência — eles são agentes, não espectadores. As ações deles têm consequências, ainda que o mundo seja punitivo, o progresso narrativo existe e deve ser respeitado.

Uma regra de ouro que eu sigo é: seja o mestre de RPG que você gostaria de ter. Se uma decisão que eu tomo na narrativa me deixaria chateado como jogador, eu tenho de repensá-la até que ela seja algo que me deixaria empolgado, animado (mesmo que seja para interpretar um personagem sofrendo por algo). A diversão não vem de escutar o mestre contar sua maravilhosa narrativa ou de tomar decisões binárias. A diversão vem de contar a história junto e qualquer coisa que não seja combustível para a narrativa deve ter seu lugar na aventura questionado — se for um balde de água fria, daqueles capazes de fazer a pessoa se levantar e sair da mesa, a minha opinião é que deve ser descartado, em troca de um balde de gasolina.

Sobre mim: sou mestre e jogador de RPG (principalmente D&D 5e e GURPS) desde 2017 e acumulei traumas e frustrações o suficiente nos dois papéis para achar que posso falar a respeito disso.

--

--

Leandro Fernandes

Repórter, UX writer, mestre e jogador de RPG, roteirista e escritor, assisto mais de cinquenta séries e não me arrependo.