Eu não tenho síndrome de Peter Pan. Eu sou o produto de uma época.

Leandro Fernandes
6 min readJan 28, 2019

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No outro dia eu estava vendo Queer Eye e em vários episódios percebi uma pressão do programa para que os “alvos” dos Fab 5 se adequassem à vida adulta. Um não podia mais passar o dia jogando videogame, o outro não podia ter barba comprida, tinha que ter “cara de prefeito”… eu adoro o programa, mas isso me deixou, ao mesmo tempo, irritado e incomodado. Irritado porque eu rejeito essa ideia de “vida adulta”. Incomodado porque se eu fosse ser um alvo, eu seria zoado por não me encaixar na “vida adulta”. O problema está nessa dualidade: estou “do lado de fora”, excluído por estruturas e por pessoas e ao mesmo tempo sou cobrado para estar “do lado de dentro”, por essas mesmas estruturas e pessoas.

Eu tenho quase trinta anos, moro com a minha mãe, não tenho um carro e nem sei dirigir (nem tenho vontade. Por motivos que renderiam outro texto, ter um carro em São Paulo é uma furada). Não sou formado na faculdade ainda, não tenho um emprego incrível. Não estou casado e nem tenho filhos. Algumas dessas coisas eu gostaria de poder mudar, mas não posso. Não porque eu sou preguiçoso ou desleixado, mas porque eu nasci em 1989, nas condições em que nasci (minha mãe escapou do confisco das contas poupança do Collor graças ao meu batizado) e cresci nos anos 90, vendo reportagens sobre crianças que passavam fome no nordeste brasileiro e sempre ouvindo a palavra “inflação” como um fantasma à espreita, assim como a palavra “cólera”.

Eu nasci numa família com certos confortos. Minha mãe e meu pai tinham bons salários, me davam tudo que podiam, eu estudei num colégio particular (que não era muito bom e nem muito caro), tinha plano de saúde e o apartamento em que moro até hoje foi comprado por eles e pago ao longo de anos e anos. Quando eles se divorciaram, obviamente a situação financeira deu uma balançada, ainda mais pelos pagamentos de pensão intermitentes. Além disso, pouco depois minha mãe entrou no programa de demissão voluntária do emprego e saiu para tentar abrir um consultório de psicologia.

Minha mãe é, aliás, o exemplo perfeito de que meritocracia não existe. Ela trabalhou por mais de vinte anos numa empresa de capital misto, foi super competente e correta o tempo todo. Ela teve algumas promoções, mas as mudanças internas a levaram a ficar sob uma chefia abusiva. Isso somado ao divórcio fez com que ela buscasse outra coisa. E o que ela achou foi a ideia de se jogar no lado clínico da psicologia, em vez dos recursos humanos. Ao longo dos anos seguintes, minha mãe foi sistematicamente minada: quando tentou entrar em consultórios para atender, foi atacada com preços absurdos para as salas; quando tentou abrir o próprio consultório, foi atacada pelas condições irreais que os planos de saúde exigem para incluir consultórios em sua lista conveniada. No fim, o prédio onde ela tinha alugado uma sala foi vendido e eventualmente demolido, um símbolo dos sonhos dela. Em momento algum ela teve preguiça. Em momento algum ela quis saídas fáceis. “Basta lutar para conseguir” é a maior mentira da sociedade. Não basta lutar.

(não vou gastar um parágrafo falando de gente da minha geração com o papo de “largue tudo para fazer x”. Quem pode largar tudo para fazer qualquer coisa tem uma tonelada de privilégios que não se encaixam em nada do que eu digo aqui. Se eu pudesse largar tudo para, sei lá, escrever aventuras de RPG, é óbvio que eu já o teria feito. Mas a vida real existe para mim. Se você pode fazer isso, se considere sortudo e aproveite a oportunidade, mas não aja como se isso se aplicasse a todos os seres humanos vivos.)

Durante esse período, eu passei da vida de adolescente para a vida adulta, pelo menos nos números. Me formei na escola (agora pública, o dinheiro tinha secado) em meio a uma depressão profunda e o período entre os dezoito e vinte anos é bem nebuloso nas minhas memórias. Arrumei empregos ruins e outros ainda piores, mas aos poucos comecei a poder ajudar com as contas em casa. De repente, pudemos retomar luxos: TV a cabo, internet de banda larga, pagar alguém para limpar a casa nos fins de semana. Comprei coisas de adulto para a nossa casa, mas também coisas menos adultas, como meus videogames. Só que eu nunca tive dinheiro para comprar nada além disso, muito menos uma casa ou um carro. Tenho amigos que estão com mais de vinte mil reais numa poupança, mas nunca compraram (leia-se: nunca precisaram comprar) uma máquina de lavar para a casa onde moram.

Praticamente desde que me vi como adulto eu sonho em sair de casa e alugar um apartamento, mas mesmo isso, morando em São Paulo e ganhando um salário baixo como quase todos que moram aqui, é um sonho distante. A cada passo parecia que se tornaria um sonho possível, apenas para depois ver a realidade dura. Passei num concurso público, “agora vai”… mas eu não ganho o suficiente para isso. Comecei a namorar firme, “é o momento”… mas nem juntando nossos salários dá para alugar algo juntos sem prejudicar todos os outros lados da nossa vida. Comprar uma casa é, efetivamente, uma ideia abstrata, algo que pertence a um campo de coisas que não fazem parte do repertório da minha vida, assim como ganhar na loteria, participar de um reality show ou conhecer a Christina Aguilera.

Eu poderia abrir mão de todos os meus “luxos” para alugar um apartamento? Com certeza. Abriria mão do kung fu, o pouco exercício físico que faço. Abriria mão do meu lazer. Deixaria minha mãe sozinha. Vale esse preço todo? Minha saúde mental em troca de me adequar ao que se espera de um homem adulto?

As pessoas que eu conheço da minha idade que têm empregos bons, das duas uma: ou tiveram um super privilégio logo de cara, com acesso a tudo que as preparasse para as competições por emprego; ou são o tipo de pessoa que vestem a camisa da empresa, passam a noite trabalhando sem receber hora extra e se contentam com festas de sexta-feira ou dias para levar seus animais para o trabalho. Não me entendam mal, isso é muito legal, eu adoraria ter isso onde eu trabalho. Só que eu não nasci com essa vocação para me doar ao trabalho. Foi um dos motivos de eu resolver ir para o serviço público: eu queria trabalhar para fazer a diferença, não para dar dinheiro a uma empresa. (mal sabia eu que encontraria uma nova insatisfação, justamente a de sentir que não faço diferença nenhuma, mas, olha só, pelo menos em algo eu me encaixo na vida adulta: frustração profissional.)

Eu sou, enfim, millennial. Com direito a todas as piadas a respeito da preguiça e as outras, mais auto-depreciativas, a respeito de estarmos impossibilitados de acessar a tal “vida adulta” pelas próprias estruturas criadas e mantidas por aqueles que nos chamam de preguiçosos. Talvez eu seja: todo mundo que me conhece sabe que eu gosto mesmo é de ficar em casa com meus videogames e séries, ou de passar horas com amigos jogando RPG. Mas eu sou adulto e entendo as responsabilidades de ser adulto: trabalho de maneira competente e eficaz, sem me descabelar pela empresa, mas também sem corpo mole. Isso rende a sensação constante e mista de não estar sendo valorizado e de que não estou fazendo um bom trabalho. É a síndrome do impostor somada a algo que eu quase chamei de megalomania enquanto escrevia isso: eu sou bom demais para ganhar tão pouco, mas ao mesmo tempo sou um idiota que não vale nada. Mais uma vez, uma dualidade.

Tudo isso é para repetir o meu título. Eu não tenho síndrome de Peter Pan. Eu sou o produto de uma geração. Suspeito que meus contemporâneos tenham histórias parecidas de lutas infrutíferas que são ignoradas quando nos tratam como pessoas que não lutam o suficiente. Eu não quero essa vida adulta que vocês querem me vender (eu não poderia pagar por ela, de qualquer maneira), obrigado. Prefiro, assim como a minha mãe fez, tentar achar outra fórmula que me traga felicidade, mesmo que no fim das contas não funcione.

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Leandro Fernandes

Repórter, UX writer, mestre e jogador de RPG, roteirista e escritor, assisto mais de cinquenta séries e não me arrependo.