Desabamento

Leandro Fernandes
3 min readJan 11, 2023

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Ele abriu a porta do apartamento e deixou os tênis ao lado, do lado de dentro, como já estava acostumado a fazer após dois anos se preocupando com o que trazia da rua para dentro de casa. Foi para o banheiro e lavou as mãos, tirou a máscara e a pendurou no gancho na cozinha. Deixou o guarda-chuva molhado aberto na lavanderia e reparou nas manchas enormes de mofo na parede. “Preciso resolver isso em algum momento”, disse para si mesmo, dando meia-volta e indo na direção do quarto para pegar uma meia e uma cueca.

Antes do banho, ficou olhando o corpo no espelho e aproveitou para tentar exercitar uma autoestima não muito musculosa e tirar fotos do próprio corpo, não muito musculoso. Se masturbou e pensou que talvez estivesse um pouco melhor, depois de meses de uma libido que subia e descia como uma montanha russa particularmente radical, mas era óbvio que não estava 100%. “Preciso resolver isso em algum momento”.

Tomou um banho cantarolando Against All Odds, talvez uma das músicas mais bregas da história da humanidade, mas que ouvira durante uma viagem de Uber e não conseguia tirar da cabeça. “Take a look at me now”.
Depois do banho, olhou bravamente a pia de louça suja e, contrariando o instinto de resolver depois, pôs-se a lavar pratos, panelas, canecas e tábuas de cortes abandonadas ali há mais tempo do que seria sensato. Ouviu um som vindo da sala, mas inicialmente não se importou. Ouviu um podcast sobre cinema e um sobre política.

Depois de olhar orgulhoso a diferença na pia, foi para a sala e então percebeu o que era o barulho. Uma rachadura no teto tinha se transformado em uma fissura. Não, agora um abismo. Como se a presença dele fosse uma senha, o teto desabou.

No começo, ele não sentiu dor e não conseguiu processar o que tinha acontecido. Pensou na TV, no videogame e no computador, que provavelmente tinham sido esmagados. Depois lembrou que ele mesmo tinha sido esmagado. De fato, a perna estava prensada embaixo de uma viga de concreto grande demais pra ser movida. Sentia os pulmões ardendo por causa da poeira. Percebeu que o celular estava ali com ele e pegou para ligar para alguém e pedir ajuda. Mas hesitou.

Pensou em tudo que tinha perdido no apartamento desabado. Pensou em tudo que tinha construído a tanto custo e que agora era poeira nos pulmões dele: um móvel que construíra ainda no primeiro apartamento que morou sem os pais; um quadro pintado pela própria irmã que ele pendurava orgulhosamente ao lado da entrada porque gostava genuinamente da imagem de uma berinjela; as plantas que vinha aprendendo a cuidar e que já não esquecia de aguar; a mesa de vidro que tinha comprado de segunda mão para reunir amigos, mas que só tinha servido o propósito algumas poucas vezes.

Pensou também nas coisas que precisava resolver e que agora ou não faziam sentido ou estavam ali soterradas com ele. Será que ele teria evitado isso se tivesse lidado com o mofo na lavanderia antes? Será que se estivesse sob medicação teria percebido a rachadura no teto aumentando?

Tanto trabalho, tanto sofrimento, tanta preocupação. Será que agora ele teria também que se preocupar em rastejar para fora das ruínas da vida que tinha construído? Ele percebeu que não queria. Não tinha forças e não queria encarar esse mundo de novo, sozinho, de mãos abanando. Já tinha sido difícil o suficiente. Então desligou o celular.

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Leandro Fernandes

Repórter, UX writer, mestre e jogador de RPG, roteirista e escritor, assisto mais de cinquenta séries e não me arrependo.