Cena 11: Anos

Leandro Fernandes
4 min readNov 20, 2019

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O ano é 2010. Eu tenho 21 anos. Minha juventude é adolescente: tudo é sexo, bebida e diversão. O trabalho fica no meio disso como algo que atrapalha. Eu me apaixono por tudo, muito intensamente. Descubro um cantor, um filme, uma série e de repente é só disso que eu consigo falar. Eu me apaixono por uma série da TV Cultura. Eu me vejo ali, eu quero me ver ali. O diretor e o elenco aparecem com uma peça, que dialoga ainda mais comigo. Eu me apaixono de novo e de novo pelas coisas e pelas pessoas. Na noite da sexta-feira antes da estreia eu vou para uma balada com meus amigos, encho a cara, não lembro se beijei alguém naquela noite, acho que sim. No dia seguinte, meio ressacado, eu me sento ao lado da minha irmã em um teatro. O nome da peça é Música Para Cortar os Pulsos.

De repente, é 2002. Eu tenho 13 anos. O nome dele é Felipe. Ele tem cabelos compridos, odeia futebol, tem uma bunda enorme e cheira muito, muito bem. O nome dela é Cecília. Ela é minha melhor amiga, loira com os cabelos cacheados, a gente vive praticamente um namoro platônico. Ele entra no namoro meio sem querer, eu passo cinco anos completamente apaixonado por alguém que nunca vai poder retribuir. Meu nome não é Ricardo — mas saindo daquela sala de teatro, é nele que me vejo.

O ano é 2012. O nome dele é G.. Ele tem uns lábios quase sempre vermelhos, fica ruborizado muito facilmente e cheira muito, muito bem. Quando ele me olha, eu sei que ele me ama. Quando ele não me olha, eu não sei de mais nada. A gente assiste à peça, várias vezes juntos. É tarde de sábado. Vamos assistir de novo. Ele passa mal, não tem estado bem, não pode ir. Eu assisto à peça, pela primeira vez sozinho. De repente, meu nome não é Isabela — mas é no sofrimento dela que eu me vejo, como se meu namoro já tivesse terminado sem eu saber. Eu chamo ele, a gente conversa no café de um teatro na Paulista. Eu choro, ele também. A gente se despede no metrô e eu digo que nunca mais vou amar ninguém.

É 2013. O nome dele é G2. Ele tem olhos afiados que contrastam com o jeito caloroso que me abraça quando eu desço a rua depois do cursinho. Ele é meu melhor amigo, mas a gente decidiu que seria mais que isso. É difícil e doloroso pros dois — ele sente tudo de maneira intensa, eu não sinto quase nada, não consigo. De repente, meu nome não é Felipe — mas é no desejo por um dublê emocional que eu me vejo.

É 2019. O nome dele é Felipe. Ele tem olhos vivos, mesmo quando me olha morrendo de sono ou bravo porque está com fome. Quando ele sorri, alguma coisa no meu peito se quebra e se reconstrói ao mesmo tempo. Eu continuo não me chamando Felipe e ele não poderia ser mais diferente daquele garoto indeciso e com dificuldade para entender os próprios sentimentos, assim como da paixão platônica que consumiu o fim da minha adolescência. Eu continuo mantendo uma distância segura da vida, em parte para não enlouquecer, em parte para conseguir processar. Eu penso demais, principalmente em mim mesmo. Meu nome não é Isabela. Nós nos sentamos para assistir ao filme baseado na peça.

É 2019 e todo o cinema ri, mas eu estou petrificado. Eu olho os últimos dez anos, olho os dez anos antes desses e só consigo me sentir paralisado — porque eu me vejo em tudo aquilo como eu me via em 2010. Atualizado, é claro, me sentindo muito mais Felipe que Ricardo, vendo no Ricardo os defeitos que eu acho que já fiz as pazes em mim, mas em outros sentidos ainda estou ali, em 2010. Em outros, eu ainda estou em 2002. Eu consigo voltar no tempo na minha cabeça e sentir toda a vergonha por ter chamado meu namorado doente pra terminar o namoro porque eu não podia mais esperar, consigo sentir a frustração de ter passado anos da minha adolescência apaixonado por heterossexuais, consigo voltar no tempo e ver que em 2012 eu tinha amigos que hoje não sei mais o que estão fazendo. Pessoas que eu amava, e acho que me amavam, mas a vida simplesmente desfaz esses laços com uma facilidade esquisita.

Eu volto no tempo e acho que em parte eu estou dizendo adeus a algumas coisas. Eu não aprendi, mas tenho que aceitar. A cena em que todo mundo riu nem existia na peça. Era nova. Eu me vejo aqui, chorando. É 2019. O meu nome é Leandro. O nome do filme é Música Para Morrer de Amor.

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Leandro Fernandes

Repórter, UX writer, mestre e jogador de RPG, roteirista e escritor, assisto mais de cinquenta séries e não me arrependo.